Fatores determinantes para a utilização da bicicleta enquanto meio de transporte quotidiano em Portugal

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Luís Caetano

Foto_LC_1_50x50 Luís Caetano (luis.caetano@w2g.pt)

Resumo

Em Portugal a utilização da bicicleta enquanto meio de transporte para a realização de deslocações quotidianas é ainda incipiente.

Segundo os dados do Recenseamento Geral da População de 2011, nos concelhos de Portugal Continental média das quotas do modo ciclável na realização de viagens casa-trabalho e casa-escola não vai além de 0,94%.

No entanto, são diversos os municípios em que essa quota é muito mais expressiva. Por exemplo, na Murtosa (25%), Ílhavo (14%) ou Golegã (11%) atingem-se com algum significado.

Tradicionalmente considera-se que a utilização da bicicleta é influenciada por diversos fatores. A orografia, a disponibilidade de infraestruturas cicláveis ou a morfologia urbana são alguns dos indicadores normalmente apontados entre os mais influentes para justificar o volume de utilização da bicicleta como modo de transporte quotidiano em meio urbano.

Este artigo pretende encontrar os parâmetros que mais contribuem para justificar a tão grande disparidade existente entre os municípios portugueses no que respeita à utilização da bicicleta.

Para isso desenvolvem-se modelos econométricos que relacionam a utilização da bicicleta com diversas variáveis socioeconómicas e físicas.

Introdução

Uma das grandes novidades do questionário de Censos 2011 foi o aparecimento isolado da bicicleta enquanto opção de resposta à pergunta “Qual o principal meio de transporte que utiliza na sua deslocação casa-trabalho ou casa-local de estudo?”.

Nos recenseamentos da população anteriores a opção bicicleta aparecia conjuntamente com motociclo o que impossibilitava qualquer análise relativa à utilização do modo ciclável, nomeadamente a sua distribuição territorial.

É agora possível realizar este tipo de análise, continuando impossibilitada uma comparação temporal uma vez que, como se referiu, este é a primeira vez que estes dados são disponibilizados.

DeterminantesBicicleta Fig1
Figura 1 – Extrato do Questionário individual do Censos 2011 (fonte: INE www.ine.pt em 26.04.2014)

 

Uma análise preliminar dos resultados aponta para uma quota global de, aproximadamente, 0,5% do modo ciclável na realização de deslocações de carácter pendular.

Em Portugal Continental, do total de 5,6 milhões de residentes que realizam viagens deste tipo, apenas 30 mil o fazem com recurso à bicicleta.

O meio de transporte mais utilizado é, de longe, o automóvel como condutor ou passageiro, representando cerca de 61,6% do total. Segue-se o transporte coletivo (nos vários modos) com 20% e o modo pedonal com 16,4%. Juntos, estes três modos agregam 98% das opções de transporte para a realização de deslocações pendulares.

Os restantes 2% distribuem-se pelo motociclo com 1,2%, bicicleta com 0,5% e outros com 0,3%.

Figura 2 – Quota dos modos de transporte na realização de viagens pendulares – Total de residentes do Continente (fonte: Censos 2011)
Figura 2 – Quota dos modos de transporte na realização de viagens pendulares – Total de residentes do Continente (fonte: Censos 2011)

 

No presente estudo a unidade de análise é o município. Interessa-nos sobretudo compreender as variações de utilização da bicicleta de município para município. Neste sentido, mais que avaliar a quota global nacional, interessa-nos trabalhar com a média das quotas dos diversos municípios do continente.

Assim, a média das quotas concelhias de utilização da bicicleta para realização de viagens de carácter pendular é de cerca de 0,7%.

 

Figura 3 – Quota dos modos de transporte na realização de viagens pendulares – Média dos concelhos do continente (fonte: Censos 2011)
Figura 3 – Quota dos modos de transporte na realização de viagens pendulares – Média dos concelhos do continente (fonte: Censos 2011)

 

O âmbito de utilização dos modos não motorizados não é o mesmo que os modos motorizados. Não é expectável que a marcha a pé e a bicicleta compitam com o automóvel ou o transporte coletivo na realização de viagens pendulares de maior distância.

Efetivamente, 93% das viagens pendulares em bicicleta têm início e fim no mesmo concelho (98% no caso do modo pedonal). Este indicador compara com a média de 72% em todos os modos, 59% no transporte coletivo e 69% no automóvel.

Deste modo, uma vez que a utilização da bicicleta se concentra claramente nas viagens intra-concelhias é neste âmbito que se concentra a nossa análise. De facto, é altamente provável que a utilização do modo ciclável em deslocações inter-concelhias se fique a dever a fatores de fronteira muito localizados difíceis de explicar através de uma análise que se pretende o mais abrangente possível.

 

Figura 4 – Importância das viagens pendulares com início e fim no mesmo concelho (fonte: Censos 2011)
Figura 4 – Importância das viagens pendulares com início e fim no mesmo concelho (fonte: Censos 2011)

 

Assim, definido o âmbito de análise, verifica-se que a média da quota concelhia de utilização da bicicleta em viagens pendulares com início e fim no mesmo município é de 0,94%.

Este valor atinge 57,9% no caso do automóvel, e 14,2% no transporte coletivo. O modo pedonal é o que tem o segundo valor mais elevado com 25,3%. A média da quota concelhia no caso dos motociclos é 1,4% e 0,3% nos outros modos.

Figura 5 – Quota dos modos de transporte na realização de viagens pendulares com início e fim no mesmo concelho – Média dos concelhos do continente (fonte: Censos 2011)
Figura 5 – Quota dos modos de transporte na realização de viagens pendulares com início e fim no mesmo concelho – Média dos concelhos do continente (fonte: Censos 2011)

 

A quota máxima é atingida na Murtosa onde 24,99% das viagens pendulares internas ao concelho são realizadas em bicicleta. Com valores superiores a 10% contam-se ainda Ílhavo e Golegã com 14,42% e 10,66%, respetivamente

Três concelhos da região de Aveiro têm quotas superiores a 5%, nomeadamente, Estarreja, Mira e Vagos. Cantanhede tem exatamente uma utilização de 5,00%. Vila Real de Santo António, Anadia e Marinha Grande completam o grupo dos dez concelhos em que a utilização da bicicleta enquanto meio de transporte para a realização de viagens pendulares internas aos concelhos é superior.

Figura 6 – Quota do modo ciclável na realização de viagens pendulares internas aos concelhos (fonte: Censos 2011)
Figura 6 – Quota do modo ciclável na realização de viagens pendulares internas aos concelhos (fonte: Censos 2011)

 

Relativamente aos concelhos em que a utilização da bicicleta é inferior, verifica-se uma elevada concentração no interior norte do país. De assinalar a existência de dois concelhos em que nenhum residente efetuava as suas deslocações pendulares em bicicleta, a saber, Penedono e Mesão Frio.

Em mais de metade dos concelhos a quota de utilização da bicicleta nas viagens pendulares internas é inferior a 0,5%.Nove em cada dez concelhos têm uma utilização que não vai além dos 2%. Só em 1% dos casos se verifica uma quota de utilização superior a 10%.

 

Figura 7 – Histograma e frequência acumulada dos concelhos do continente por classe de utilização da bicicleta
Figura 7 – Histograma e frequência acumulada dos concelhos do continente por classe de utilização da bicicleta

 

Da análise destes resultados conclui-se que a quota de utilização da bicicleta é, em média e na generalidade do território, bastante reduzida. Conclui-se igualmente que, apesar disso, alguns dos municípios de Portugal Continental evidenciam resultados com algum significado que se destacam claramente dos restantes.

Assim, a questão para a qual se pretende encontrar uma resposta no presente artigo é se será possível encontrar variáveis que distingam os municípios com maior utilização da bicicleta dos restantes.

Análise preliminar

A análise preliminar pretende avaliar o conjunto de indicadores que, empiricamente, aparentem estar mais correlacionados com a utilização da bicicleta.

O primeiro indicador avaliado é o declive médio das vias.

Confrontando em cada município a rede viária preferencial para a utilização de bicicleta em viagens pendulares (excluem-se auto-estradas, Itinerários principais, complementares e estradas nacionais principais) com a altimetria, é possível calcular o declive médio das vias com estas caraterísticas.

A simples observação dos mapas de declive das vias e de quota de utilização da bicicleta permite concluir que, regra geral, às manchas de declive mais acentuado correspondem quotas de utilização de bicicleta mais reduzidas. Este fator é sobretudo evidente no interior centro e norte do território.

Figura 8 – Altimetria de Portugal Continental, Declive Médio das Vias e Quota de Utilização da Bicicleta
Figura 8 – Altimetria de Portugal Continental, Declive Médio das Vias e Quota de Utilização da Bicicleta

 

Da análise gráfica da relação entre o declive médio das vias e a quota de utilização da bicicleta nas viagens pendulares intra-concelhias resultam duas grandes conclusões.

A primeira é que nos municípios cujo declive médio das vias é superior a 5% a quota de utilização da bicicleta é absolutamente residual indiciando que este limiar é de algum modo dominante relativamente a qualquer outro fator de análise.

Figura 9 – Quota de utilização da bicicleta em função do declive médio das vias (universo total)
Figura 9 – Quota de utilização da bicicleta em função do declive médio das vias (universo total)

 

A segunda conclusão é que, avaliando apenas os resultados dos municípios com declive inferior a 5%, verifica-se que existe uma relação clara entre a do declive médio das vias e o nível de utilização da bicicleta. Neste âmbito, assinale-se a curiosidade de os três municípios com declive mais reduzido corresponderem igualmente àqueles em que a utilização da bicicleta é mais intensa, nomeadamente, Murtosa, Golegã e Ílhavo.

Como seria de esperar, esta relação é inversa, ou seja, ao aumento do declive corresponde, em média, a diminuição da utilização do modo ciclável. Para além disso, a análise do gráfico indicia também que esta é uma relação logarítmica.

DeterminantesBicicleta Fig10
Figura 10 – Quota de utilização da bicicleta em função do declive médio das vias (universo dos municípios com declive médio das vias inferior a 5%)

 

De modo a compreender ainda melhor o efeito do declive médio das vias na intensidade de utilização da bicicleta em viagens pendulares, agruparam-se os municípios conforme possuem uma rede viária com um declive médio inferior ou superior a 3%.

Deste procedimento resultou que a média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios com um declive mais baixo é de 2,63% enquanto que no outro grupo (declive superior a 3%) a quota de utilização da bicicleta fica-se pelos 0,47%.

Ou seja, a média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios com um declive médio das vias igual ou inferior a 3% é mais que 5 vezes superior às quotas dos restantes municípios.

Figura 11 – Média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios com menos e mais de 3% de declive médio das vias
Figura 11 – Média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios com menos e mais de 3% de declive médio das vias

 

Outro fator que, numa avaliação preliminar, aparenta contribuir para explicar as diferenças encontradas na utilização da bicicleta é facto de os municípios funcionarem como capital de distrito ou englobarem uma área metropolitana.

Assim, evidenciando as áreas metropolitanas e os municípios capital de distrito no mapa de quotas de utilização de bicicleta, é possível observar que, geralmente, nestes territórios a utilização de bicicleta tende a ser inferior à dos concelhos limítrofes que não se enquadram nestas caraterísticas.

Figura 12 – Áreas Metropolitanas e Capitais de Distrito vs Quota de Utilização de Bicicleta
Figura 12 – Áreas Metropolitanas e Capitais de Distrito vs Quota de Utilização de Bicicleta

 

Calculando a média das quotas de utilização da bicicleta dos municípios que funcionam como capital de distrito ou englobam uma área metropolitana, verifica-se que nestes territórios a utilização da bicicleta é, em média, menos de metade do resto do território.

Enquanto nos municípios que não pertencem a este grupo a média das quotas de utilização da bicicleta é de 1,04%, nos municípios capital de distrito ou pertencentes a uma área metropolitana este valor fica aquém dos 0,50%.

O facto de a estes municípios corresponderem, normalmente, viagens pendulares mais longas e de se tratar de locais de forte atração e geração de viagens com maior pressão dos modos motorizados, contribui certamente para explicar estes resultados.

Figura 13 – Média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios conforme funcionam como capital de distrito, pertencem a uma área metropolitana, ou não
Figura 13 – Média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios conforme funcionam como capital de distrito, pertencem a uma área metropolitana, ou não

 

O ambiente ciclável existente em cada município é outro aspeto considerado relevante numa análise preliminar com o objetivo de encontrar variáveis explicativas para a dispersão observada no que respeita à quota de utilização da bicicleta em viagens pendulares de âmbito intra-concelhio.

Neste sentido, ambiente ciclável deve ser interpretado como o nível de facilidade com que se deparam os residentes de determinado município para a realização de deslocações em bicicleta.

Diversos fatores contribuem para um melhor ambiente ciclável. Aspetos imateriais como a tradição local ou medidas de educação e promoção dos modos suaves em geral e da bicicleta em particular são sem dúvida relevantes. Outros aspetos materiais como as caraterísticas da estrutura viária, nível de congestionamento rodoviário ou a existência de infra-estruturas cicláveis e de parqueamento de bicicletas influenciam também a qualidade do ambiente ciclável em determinado local.

Parte destas variáveis descritivas do ambiente ciclável não são quantificáveis, ou, sendo quantificáveis, não é possível recolher informação de uma forma sistemática para todos os municípios do país.

Assim, a variável escolhida para descrever a qualidade do ambiente ciclável resulta da extensão de infraestruturas cicláveis destinadas à realização de deslocações de caráter pendular. Para isso relacionou-se a localização das infraestruturas cicláveis com a distribuição demográfica no território de Portugal Continental construindo-se, para cada município, o indicador “percentagem de população residente a 100 metros ou menos de uma infraestrutura ciclável”.

Para isso realizou-se o levantamento de todas as infraestruturas cicláveis existentes no país. As fontes utilizadas foram a base de dados do site www.ciclovia.pt e o Open Street Map disponível em www.openstreetmap.org.

O site www.ciclovia.pt é uma fonte de elevada qualidade, com uma descrição bastante exaustiva, incluindo características físicas, data de entradas serviço, levantamento fotográfico e mapas de localização compatíveis com a generalidade dos pacotes de software de sistemas de informação geográfica.

O Open Street Map é também uma fonte preciosa para este tipo de informação já que, sendo uma ferramenta colaborativa, é utilizado pela comunidade de utilizadores de bicicleta como base atualizada das infraestruturas cicláveis. De destacar que, inclusivamente, existe uma versão dedicada ao universo ciclista denominado Open Cycle Map.

Estas duas fontes foram utilizadas em complemento. Verificou-se uma forte sobreposição de resultados, ou seja, a grande maioria das infraestruturas foram encontradas nas duas fontes.

Para a análise realizada só se teve em conta as infraestruturas cuja utilização era segregada dos veículos automóveis. Assim, não foram incluídos os chamados percursos cicláveis que, apesar de por norma serem suportados por vias com volume de tráfego pouco intensos, funcionam em complemento com os automóveis.

Foram tidos em conta todos os tipos de infraestruturas segregadas independentemente da qualidade do desenho, materiais utilizados, obra ou nível de segregação (total, por lancil, por pintura no pavimento…). Esta opção prende-se sobretudo com a dificuldade de caracterizar exaustivamente todos os metros de infraestruturas cicláveis existentes no país.

Uma vez que esta análise tem por base os resultados do Censos de 2011 excluiu-se da análise todas as infraestruturas cicláveis que se sabia terem sido construídas após essa data.

Apesar de da inexistência de uma fonte única totalmente exaustiva resultar com toda a certeza alguns erros e omissões considera-se que as precauções tidas no processo de recolha de dados resulta uma base de dados com a qualidade suficiente para a prossecução dos fins propostos.

Uma vez que se está a caraterizar as viagens pendulares quotidianas interessam sobretudo as infraestruturas cicláveis que podem ser utilizadas para esse fim. Muitos concelhos possuem redes cicláveis bastante extensas mas que muitas vezes se destinam quase em exclusivo ao uso recreativo ou desportivo. Neste grupo incluem-se, por exemplo, as ecopistas resultantes da desativação de linhas e ramais ferroviários. Apesar de serem, sem dúvida, elementos relevantes para a promoção de utilização da bicicleta, estas infraestruturas só em casos muito especiais serão utilizadas para a realização de viagens pendulares já que, na maior parte das vezes atravessam territórios sem grande expressão demográfica.

Neste sentido a localização das infraestruturas cicláveis foi cruzada com a distribuição da população recenseada no Censos 2011. Para esse cruzamento utilizou-se a distribuição mais fina publicada pelo Instituto Nacional de Estatística, nomeadamente, as BGRI que, nas áreas urbanas mais de densas correspondem, grosso modo, ao quarteirão.

O cruzamento desta informação permitiu calcular, para cada município, a população residente a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável.

 

Figura 14 – Distribuição das Infraestruturas Cicláveis e proporção da população residente a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável (fonte: produção própria a partir de www.ciclovia.pt, Open Street Map e INE)
Figura 14 – Distribuição das Infraestruturas Cicláveis e proporção da população residente a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável (fonte: produção própria a partir de www.ciclovia.pt, Open Street Map e INE)

 

Classificando o conjunto de municípios com infraestruturas cicláveis nos seus territórios verifica-se que, em média, naqueles em que a percentagem de população residente a 100 metros ou menos de uma infraestrutura ciclável supera os 5% a quota de utilização da bicicleta para a realização de viagens pendulares é de 4,44% contra os 0,70% que se verifica nos restantes concelhos.

DeterminantesBicicleta Fig15
Figura 15 – Média das quotas de utilização da bicicleta nos municípios conforme funcionam como capital de distrito, pertencem a uma área metropolitana, ou não

 

Juntando o efeito agregado das três variáveis consideradas na análise preliminar verifica-se que nos municípios em que o declive médio das vias é menor ou igual a 3%, em que pelo menos 5% da população reside a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável e que não pertence a uma área metropolitana nem funciona como capital de distrito, a quota da utilização da bicicleta em deslocações pendulares sobe para os 8,93% o que representa um acréscimo de 9,5 vezes relativamente à média nacional.

DeterminantesBicicleta Fig16
Figura 16 – Efeito agregado das três variáveis analisadas

 

Esta análise preliminar permite concluir que, apesar da incipiente utilização da bicicleta que se faz sentir na grande maioria dos municípios do país, existem fatores que contribuem para explicar a dispersão de resultados encontrados.

Modelo econométrico

Os resultados da análise preliminar justificam avançar para uma análise mais sistemática através da produção de modelo econométrico em que a “quota de utilização da bicicleta em viagens pendulares internas aos municípios” funciona como variável dependente.

Como se verificou, existe uma forte relação entre o declive médio das vias e a quota de utilização da bicicleta. Inclusivamente concluiu-se que nos municípios com declive médio das vias superior a 5% a utilização da bicicleta é totalmente residual.

Neste sentido, tendo em conta que o declive médio das vias a partir de 5% parece dominar as restantes variáveis, decidiu-se excluir esses concelhos da análise econométrica realizada.

Seleção de variáveis

A seleção de vaiáveis iniciou-se com a escolha da variável dependente do modelo econométrico, ou seja, o fenómeno que se pretende explicar.

Tendo em conta os elementos descritos anteriormente, a escolha recaiu sobre a “Quota de Utilização da Bicicleta nas Deslocações Internas aos Concelhos” (QuotaBicicleta) transformada em logaritmo.

DeterminantesBicicleta Fig17
Figura 17 – Universo de análise do modelo econométrico

 

Para além dos indicadores apresentados anteriormente na análise preliminar foram avaliadas outras variáveis com potencial explicativo da variável dependente.

Assim, foram analisadas um conjunto de 16 variáveis agrupadas em três conjuntos, nomeadamente o Ambiente Físico, o Ambiente Urbano e a Socio-economia.

Figura 18 - Variável dependente do modelo econométrico - Quota de Utilização da Bicicleta das Deslocações Internas aos Concelhos
Figura 18 – Variável dependente do modelo econométrico – Quota de Utilização da Bicicleta das Deslocações Internas aos Concelhos

 

No âmbito do Ambiente Físico avaliaram-se as seguintes variáveis:

  • Orografia – Declive médio das vias urbanas, fonte: Atlas do Ambiente [%] – DecliveMedioVias;
  • Volume de precipitação anual, fonte: Atlas do Ambiente [mm] – mmPrecipitacaoAno;
  • Dias de precipitação anual, fonte: Atlas do Ambiente [dias] – DiasPrecipitacaoAno;
  • Insolação – horas de sol por ano, fonte: Atlas do Ambiente [horas] – HorasInsolacaoAno;

No que respeita ao Ambiente Urbano as variáveis avaliadas foram:

  • Proporção de população residente a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável, fonte: produção própria a partir de ciclovia.pt , www.openstreetmap.org e INE[%] – PercPop100mCiclovia;
  • Acidentes rodoviários por 100.000 habitantes, fonte INE [número de acidentes] – AcidentesPor100kHab;
  • Concelho funciona como capital de distrito ou pertence a uma área metropolitana, fonte: Carta Administrativa Oficial de Portugal [Sim=1; Não=0) – AreaMetropolitanaCapitalDistrito;

Por fim, as variáveis socioeconómicas consideradas foram as seguintes:

  • Proporção da população residente entre 0 e 9 anos, fonte: INE [%] – PercPop0_9;
  • Proporção da população residente entre 10 e 24 anos, fonte: INE [%] – PercPop10_24;
  • Proporção da população residente entre 25 e 64 anos, fonte: INE [%] – PercPop25_64;
  • Proporção da população residente com 65 ou mais anos, fonte: INE [%] – PercPop65OuMais;
  • Proporção da população residente empregada no setor primário, fonte: INE [%] – PercSetorPrim;
  • Proporção da população residente empregada no setor secundário, fonte: INE [%] – PercSetorSec;
  • Proporção da população residente empregada no setor terciário, fonte: INE [%] – PercSetorTerc;
  • Proporção da população residente reformada, fonte: INE [%] – PercReformados;
  • Proporção da população residente a frequentar o 3º ciclo do ensino básico ou ensino secundário, fonte: INE [%] – PercFreq3EnsBasEnsSec;
  • Proporção da população residente a frequentar um nível de ensino mais elevado que o secundário, fonte: INE [%] – PercFreqEnsPosSecSuperior;

 

Resultados

Com base nas variáveis selecionadas e dados recolhidos estimaram-se diversos modelos de regressão múltipla.

O teste das variáveis foi realizado através do método stepwise em que cada variável é incluída ou retirada do modelo conforme a sua correlação com a variável dependente e colinearidade com as restantes variáveis independentes.

Deste processo resultou a seleção das seguintes variáveis independentes:

  • DecliveMedioVias – Declive médio das vias urbanas transformada em logaritmo;
  • AreaMetropolitanaCapitalDistrito – Concelho funciona como capital de distrito ou pertence a uma área metropolitana;
  • PercPop100mCiclovia – Proporção de população residente a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável;
  • PercPop25_64 – Proporção da população residente entre 25 e 64 anos;
  • PercSetorSec – Proporção da população residente empregada no setor secundário transformada em logaritmo.

A formulação do modelo resultante é a seguinte:

Figura 19 - Formulação do modelo de regressão
Figura 19 – Formulação do modelo de regressão

Na figura seguinte apresenta-se as caraterísticas do modelo apurado. O nível de correlação é elevado (R=0,78) e os valores apurados para os coeficientes das variáveis independentes apresentam significância estatística.

 

Figura 20 – Caraterísticas do modelo de regressão múltipla
Figura 20 – Caraterísticas do modelo de regressão múltipla

Interpretação dos resultados

A interpretação dos resultados encontrados pode ser realizada em duas vertentes.

Por um lado o sinal dos coeficientes das variáveis independentes indica-nos o sentido de variação da variável dependente. Esta análise é importante também para a validação do modelo.

No caso em apreço verifica-se que o aumento do declive médio das vias urbanas tem um impacte negativo na intensidade de utilização da bicicleta na realização de viagens de caráter pendular.

Por outro lado, o facto de um concelho ter funções de capital de distrito ou ser parte de uma área metropolitana contribui também para uma menor utilização da bicicleta.

Pelo contrário, a população residente até uma distância de 100 metros de uma infraestrutura ciclável tem uma correlação positiva e significativa com o aumento da utilização da bicicleta na realização de viagens pendulares concelhias.

Estes resultados estão em linha com a análise preliminar realizada e apresentada anteriormente.

De acordo com o modelo apurado a utilização da bicicleta tem também uma correlação positiva com a proporção da população residente com idade compreendida entre 25 e 64 anos e com a proporção da população empregada no setor secundário.

Para além do sinal dos coeficientes das variáveis independentes, o seu valor também é relevante e passível de análise.

Analisando o modelo verifica-se que as diversas variáveis incluídas têm caraterísticas diferentes conforme o grau de intervenção que as autoridades locais têm à sua disposição para influenciar a quota de utilização da bicicleta.

Assim, no que respeita ao declive médio das vias ou o nível administrativo do concelho o nível de intervenção dos municípios é praticamente nulo.

Os indicadores socioeconómicos incluídos do modelo correspondem a “séries pesadas” que apesar de serem passíveis de ser ligeiramente influenciados por políticas municipais o seu efeito só se faz sentir no longo prazo. Por outro lado, os efeitos eventualmente produzidos por políticas municipais podem com alguma facilidade ser anulados por políticas nacionais ou regionais.

Na verdade, onde o município tem real influência para aumentar a utilização da bicicleta é na criação de um ambiente urbano mais propício a esse modo de transporte.

Na figura seguinte apresenta-se a aplicação do modelo de regressão múltipla a um caso hipotético de modo a medir o impacte que a melhoria do ambiente ciclável poderá ter na utilização da bicicleta enquanto modo de transporte para a realização de deslocações pendulares. Considerou-se um concelho que não seja capital de distrito e não faça parte das áreas metropolitanas, em que o declive médio das vias urbanas seja de 2%, com 52% de população residente entre 25 e 64 anos e 11% da população empregada no setor secundário

Nestas condições o modelo aponta para que o aumento da proporção da população a menos de 100 metros de uma infraestrutura ciclável de 10% para 20% resulta num crescimento de 1,94 pontos percentuais na utilização da bicicleta passando de 2,99% para 4,93%.

No entanto, a passagem de 20 para 30% da população residente a menos de 100 m de uma infraestrutura ciclável já resulta num acréscimo de 3,20 pontos percentuais para 8,14%.

Assim, de acordo com estes elementos pode-se concluir que os municípios podem ter uma influência potencial real no aumento da utilização da bicicleta enquanto meio de transporte para a realização de viagens pendulares.

Figura 21 – Exemplo hipotético de aplicação do modelo de regressão múltipla
Figura 21 – Exemplo hipotético de aplicação do modelo de regressão múltipla

 

Nesta fase é importante efetuar um conjunto de ressalvas para precisar a interpretação dos resultados apurados.

Este modelo apenas servirá para explicar o início da curva. Se numa fase inicial é expetável que crescimentos marginais da qualidade do ambiente urbano resulte em ganhos positivos crescentes na quota de utilização da bicicleta, não se pode esperar que esses ganhos crescentes sejam permanentes. Assim é de esperar que em situações em que o ambiente ciclável se encontre estabilizado os impactes na utilização da bicicleta sejam cada vez menores.

Ou seja, a curva da quota de utilização da bicicleta deverá tender para uma assíntota que, no caso nacional é, neste momento, impossível estimar o seu valor.

É também necessário ter em consideração que os resultados apurados tentam espelhar a situação que se verificava em 2011, nomeadamente, no que respeita à qualidade das redes cicláveis existentes nesse momento.

É de esperar que à medida que os padrões de qualidade aplicados na construção das infraestruturas cicláveis forem aumentando, o seu impacte na captação de novos utilizadores seja também maior.

Por fim, existem outros fatores que influenciam estes resultados que não foram incluídos no modelo por não serem facilmente mensuráveis ou por não existirem dados disponíveis. Um exemplo claro são a tradição local ou as políticas de educação promovidas pelos municípios que podem influenciar positivamente a utilização da bicicleta e que não aparecem representados neste modelo.

(Artigo apresentado no XI Congresso Ibérico “A Bicicleta e a Cidade”)